sábado, 19 de junho de 2010

Chica Pão - 16°lugar Prêmio Unifor de Literatura

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EUDISMAR MENDES

Eudismar Maria Fernandes Mendes, professora aposentada, nasceu em Catuana-CE em 1939. Aos 11 anos conquistou o prêmio literário com a historia: “OS coquinhos”- da revista Sesinho. Formada em Letras. Membro da Associação Cearense dos Escritores, Círculo de Leituras do SESC-CE (Abraço Literário) e da Criação Literária (Encontro com a Palavra) SESC-CE.


Todos conheciam a Chica Pão que, na verdade, tinha por nome Francisca Maria da Conceição. Mas isto só constava em documento _ uma simples certidão de nascimento, tão encanecida em que mal se lia o seu nome. A idade ninguém sabia precisar, era de pele escura, do tipo de pessoa que não se consegue avaliar ao certo o tempo vivido.

Dia após dia, ia e vinha pelas casas de pessoas de posse tentando arranjar emprego. Já era bastante idosa, nunca conseguiu um trabalho fixo. Assim, ia levando sua vidinha ao deus-dará, lavando um prato aqui, outro ali... Vivia isolada, praticamente só vivia emburrada. Quando saía do esconderijo no mato e vinha à rua, todos gritavam: “Olha a Chica Pão!... Chica Pão!... Chica Pão!...”Aí ela se transformava: raivosa como ficava, saía com os mais inadequados impropérios mandava todo mundo à baixa da égua, entre outras coisas.

A criançada gostava bastante da Chica Pão. Só que alguns moleques não se apiedavam dela; mesmo porque criança adora ver os adultos sofrerem. E, quanto mais a mulher revidava, mais era destratada pelas crianças. Devo confessar, envergonhada, que também fazia parte daquela turma desalmada.

Um dia Chica Pão adoeceu, e não nos deu mais o ar da sua graça. Juntamos um grupo e entramos no mato em busca de sua morada. Encontramos, porém mal pude suportar forte odor em torno daquele casebre, muitos urubus sobrevoavam rasantes a palhoça, e todos fugimos amedrontados.

Minha curiosidade, entretanto, venceu_me e resolvi dar uma espiada na defunta com tão forte odor, pensávamos que ela já havia falecido. Fui chegando, pé ante pé, até deparar-me com a real pobreza franciscana. Chica Pão, inerte numa fianga, dava-me um pouco de medo. Eu tinha por esse tempo uns onze ou doze anos, mas decidi que não a abandonaria ao seu infortúnio. Algo teria que se fazer pela pobre moribunda.

Então, levantei Chica Pão da rede e a fiz sentar em um banquinho de caixa de sabão. Já que ela fedia muito, urgia fazer-lhe um asseio. Mas, como se estávamos sozinhas? No pequeno quintal encontrei uma grande cuia. Acendi o fogão de trempe, aqueci água e, com paninhos velhos, fiz-lhe a higiene. Assustou-me ver que dela saíam algumas vísceras _ àquele tempo eu não sabia muito das coisas, hoje suponho que seu útero teria arriado. O fato é que aquelas carnes fétidas me deixaram nauseada, mas agüentei.

Após o penoso ritual da limpeza, ela me pareceu aliviada. Era hora de arranjar alguma coisa para alimentá-la... E tudo ocorreu com a graça de Deus. Assim, eu passaria a freqüentar a minha enferma diariamente. Fiz desse mister minha devoção de menina, estava feliz por amparar um ser tão indefeso.

Tempos mais tarde, minha paciente, no limite de suas forças, pediu-me que a levantasse.Com muito esforço, consegui atendê-la, mas logo tornou a deitar-se. Então me sorriu com o semblante de plena gratidão e amor.

Chica Pão enfim sentia-se feliz, e eu imensamente aliviada, embora aquela tenha sido a única vez em que a vi sorrir. E apenas sorriu para morrer.

Um comentário:

gorettiguerreira disse...

Que generosidade tamanha ainda nos conforta quando deparamos com um texto como esse narrando a vida da pobre Chica Pão.
Lindo texto. Parabéns Eudismar.
Bjs de luz aos abracistas.
Goretti Albuquerque