domingo, 23 de outubro de 2011

Do colibri de Alencar ao pavão de Braga

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Rio de Janeiro: Cidade Maravilhosa é apontada por especialistas como berço e primeira musa da crônica no Brasil

A pesquisadora cearense Ana Karla Dubiela discorre sobre o conceito, o estilo e a trajetória da crônica no Brasil. Gênero híbrido, polêmico e, sobretudo, encantador
A crônica andava a pé. Hoje, veloz como a própria contemporaneidade, tomou o metrô e se incorporou ao burburinho urbano. No processo de busca de identidade, a crônica literária tem como companhia toda uma nação e os princípios que marcam os rumos imprecisos da literatura nos séculos XX e XXI.


A "crise dos fundamentos da vida humana", como define Gilberto de Mello Kujawski, tem sua raiz na quebra dos padrões da vida cotidiana. As aflições do homem de nosso tempo e a crônica têm, portanto, a mesma raiz: a cotidianeidade.


A linguagem e o teor singulares do gênero traduzem o sentimento contemporâneo da saga em busca de lucidez e segurança. Do seu surgimento - como registro histórico do império - ao século XIX, era de ouro dos folhetins, evolui e se assume híbrida. Foi José de Alencar quem primeiro usou a metáfora do colibri sobre a flor (e não Machado de Assis, que somente escreveu a mesma metáfora para conceituar a crônica pelo menos 20 anos depois, embora seja citado como seu criador).


Como o colibri, que suga o néctar de poesia da flor e logo esvoaça para colher outros fragmentos do cotidiano, a exemplo de diversos textos da série "Ao correr da pena", de Alencar, e da borboleta amarela de Rubem Braga, a crônica se legitima nas miudezas do dia a dia; inaugura uma história que colhe resquícios do passado, renegados pelo historicismo, e com eles transforma e (re)cria o presente, à maneira de Walter Benjamin.


A crônica, portanto, passou a agregar, a partir do século XX, três áreas do conhecimento: história (nos antigos reinados, quando ainda não era denominada crônica, mas trazia em sua essência a linguagem oral, típica do gênero), o jornalismo (no século XIX) e a literatura (entre o século XIX e o XX). Hoje, a forma curta, o tom fragmentado e ligeiro encaixam-se perfeitamente no frenesi pós-moderno.


Talvez por isso, tenha conseguido se firmar, em nossos dias, como prosa tipicamente brasileira. Tipicamente brasileira, mas não exclusivamente nacional, se alargamos o olhar do próprio umbigo, reconhecendo o valor de excelentes cronistas lusitanos, como Inês Pedrosa, por exemplo, ou poloneses, como Ryszard Kapuscinski que, certa vez, escreveu no The New York Times: "A crônica - refiro-me à boa crônica - é arte e, como tal, seu único compromisso com o leitor é apresentar uma visão acerca de um lugar, que ninguém tenha apresentado antes, revelar um universo que só o artista pode fazer".


Sentimentos coletivos


Na virada dos séculos XIX e XX, a crônica tomou o bonde que mudava o ritmo e os costumes da cidade - numa nítida alegoria ao progresso - e registrou sentimentos coletivos, tradições, anseios e sonhos de gerações divididas entre a esperança e a miséria de um país iletrado.


O cenário carioca concentra as atenções literárias e culturais das elites nacionais, que vivem soberbamente as benesses de capital federal. Os jornais cariocas marcam os registros de fundação da crônica brasileira, fazendo com que alguns estudiosos da literatura considerem o gênero filho legítimo do Rio.


O estilo urbano, a molecagem carioca, predominavam nos grandes jornais brasileiros. Mas é importante observar que, em menor escala, multiplicavam-se pelo país cronistas dos mais variados tons, o que põe por terra a teoria da formação de um gênero em estreitos limites geográficos. É fato que, os grandes escritores, nascidos ou não no Rio de Janeiro, se apropriam de suas cidades e lançam um farol sobre a história da crônica no País.


Extrapolando os limites da região Sudeste, a voz da crônica, tímida figurante de fundo de palco, aos poucos, toma de assalto o espetáculo, encanta o público e garante um lugar na cena literária brasileira. Do "rés-do-chão", ou seja, do canto inferior da página dos jornais que lhe era reservado no século XIX, alça voo, independente da dificuldade dos teóricos em classificá-la. Nasceu com hibridismo crônico, desenvolveu-se, assumiu a ambiguidade e também o status de gênero literário.


Como diz Afrânio Coutinho, o que a caracteriza não é a "ordem ou a coerência, mas exatamente a ambiguidade", que "não raro a conduz ao conto, ao ensaio por vezes, e frequentemente ao poema em prosa.(...) De qualquer modo, o que se deve ressaltar é a importância que o gênero vem assumindo em nossa literatura".


A instantaneidade da crônica, que faz João do Rio denominá-la de "gênero gêmeo à cinematografia", a conquista da posteridade através dos livros, sua forma flutuante e a aceitação como gênero literário são fatos que acirram o debate sobre a impossibilidade crônica de um conceito sobre o gênero. Ou, pelo menos, instigam a revisão sobre a postura conservadora dos que definem a crônica como efêmera, tanto quanto o jornal, que a consagrou.


Não faz mais sentido falar nisso em pleno século XXI, quando as crônicas tomaram conta da TV, dos blogs e sites, do rádio, das livrarias e até - de forma minúscula e preconceituosa, é verdade - da própria academia, ao lado dos gêneros nobres como o romance.


Ninguém melhor que os próprios cronistas para defender seu ofício: "Eu sempre repito que a universidade tem que descobrir a crônica ainda. A crônica ainda não foi teorizada suficientemente. Há uma série de equívocos, inclusive o próprio Antonio Candido tem um equívoco sobre isso, quando ele diz que a crônica é um gênero menor. Não é um gênero menor. (...) Há pessoas menores diante de certos gêneros. Quando tratado devidamente, o gênero torna-se maior", diz Affonso Romano.


Lygia Fagundes Teles, em artigo publicado recentemente no jornal O Globo, concorda com Sant´Anna e utiliza um termo meio démodé para definir um elemento fundamental na escrita da crônica: a inspiração.


"Rubem Braga, Carlos Drummond, Clarice Lispector foram grandes cronistas. E não é fácil ser cronista, tem de ter inspiração, uma palavra que saiu da moda, mas em que eu acredito muito. O que é a inspiração? É uma transformação no interior do ser, como se fosse um novo ser que surge no interior do velho". Nada mais benjaminiano.


E continua: "A experiência da inspiração é uma experiência delicada, mas decisiva. De repente, você olha para algo e recebe aquela mensagem misteriosa. Pode ser um ser vivo, pode ser um objeto, ou uma paisagem. Você olha e inspira. Você inspira o objeto e, quando depois o expira, vem a criação literária".


Assim, na perspectiva de Lygia, de olhar algo e enxergar outro, alegoricamente, é que Rubem Braga, o pai da crônica moderna, escreve "O pavão" - a preferida do poeta Manuel Bandeira. O pavão, o "arco-íris de plumas", é a imagem do pensamento que remete o cronista ao fazer artístico, à criação poética e, dela, aos olhos de sua amada. O puxa-puxa de assunto que suga da imagem uma "certa inefável poesia".


"Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d´água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade".


A qualidade e a estreita relação com os leitores, mais que o mero questionamento sobre a permanência e a dimensão do gênero, foram atributos indispensáveis para a sua presença na história literária do Brasil.


Além das fagulhas líricas, sociais e políticas que acendeu, há, principalmente, o legado literário: a crônica caiu nas graças de um país historicamente iletrado. É o luxo do artista, que "atinge o máximo de matizes com o mínimo de elementos". Seu grande mistério? A simplicidade. "Minúsculas bolhas d´água em que a luz se fragmenta" - e reflete a cidade. A crônica de Rubem Braga é o maior exemplo disso.Jornalista e doutoranda em literatura comparada na Universidade Federal Fluminense (RJ)

ANA KARLA DUBIELA*
ESPECIAL PARA O CADERNO 3
Fonte: Diário do Nordeste

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